16/08/2009

Machado de Assis


Machado de Assis é talvez o mais obrigatório dos nossos autores. Faz parte da própria nacionalidade, da formação cultural mínima para o brasileiro, e cabe ao professor apresentá-lo aos seu alunos, tarefa que pode ser bastante ingrata quanto mais o tempo nos distancia do século XIX, e quanto menos o mestre o conhece e é capaz de amar.

Tive a grande sorte de ser apresentada à sua obra por um professor que sabia se colocar no lugar dos adolescentes e compreender o que, na obra do velho bruxo, tinha o potencial de incendiar a imaginação, seduzir-nos para um autor que, como as ostras, requer uma certa maturidade de paladar para ser saboreado. Aos catorze, não estamos ainda prontos para as casmurrices. O ciúme, a suspeita, são melhor apreciados por velhas almas calejadas, no desencanto dos dezessete, dezoito anos. Aos catorze somos ardentes, voláteis como relâmpagos e críticos tremendamente azedos: não nos venham com Iaiás ou Helenas pois vamos achar chaaaaaato e o risco é que para sempre ou por muitos anos Machado esteja irremediavelmente perdido para nós.

Mas o Zé Luís era danado. Éramos uma classe só de meninas, que começavam a descobrir o mundo. Rápidas, palhaças, engraçadas e dispersas como bolinhas de azougue, e ele sabia disso muito bem. Soube fisgar-nos com o anzol do humor fino, da ironia rascante d'O Alienista. Nada de pedir resumo, resenha, que amor não nasce da razão. Os capítulos foram lidos pouco a pouco, discutidos e dramatizados em classe. Não se tratava de dourar a pílula, fazer-nos engolir o remédio ruim disfarçado em chocolate, essa bobagem de “aprender brincando”, como se não fosse tudo parte de uma mesma coisa. Era acompanhar-nos num mergulho de cabeça na fina ironia, no fundo bem próximo ao dessa idade “inquieta e duvidosa”, preparando-nos para o amargor com o qual a vida estava prestes a nos confrontar, talvez aos quinze, talvez já. Dali saí pronta para o Brás Cubas, e estava feito: era amor, e foi pra sempre.


Amo essas edições em papel bíblia, pequenas, compactas, de letras pequenas mas bem legíveis, boas de levar pra cama, grandes companheiras em viagens. Um volumezinho com os romances; outro com todos os contos, e ainda o terceiro com poemas e crônicas. Machado de Assis fui descobrindo, principalmente, nas inúmeras releituras: nos vários momentos da vida, há algo que nos chama a atenção de maneira diferente. Estava lá, mas não víamos! Como era possível? O grande psicólogo; as filigranas do texto com suas diversas camadas, profundidades; o humor e a ironia; o amargor e a desesperança... e o que ainda há por descobrir. As crônicas são uma viagem no tempo, ao cotidiano do século XIX , mas que faz compreender o que é eterno e universal. Agora, abro uma página ao acaso (A semana, crônica 192) e leio:
“Qualquer de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu”.
Pois não é?

Machado de Assis, Obra Completa - em três volumes - Aguilar, Rio de Janeiro, 1962. Ilustrações da época do autor.

02/08/2009

Os Anõezinhos

Entre os livros que havia na biblioteca infantil, os desta coleção estavam entre os meus preferidos. Ficava horas a fantasiar sobre a idéia de que houvesse pessoazinhas minúsculas vivendo no nosso jardim, e que eles usassem, transformados, os objetos descartados por nós. Acho que é um tema que fascina crianças de todos os tempos; curti também a “Polegarzinha” de Andersen e séries de TV como “Terra de Gigantes”. Volta e meia reaparecem outras variações, em livros, TV e cinema.


A casa dos anõezinhos era feita de uma velha botina com telhado de cartas de baralho; uma casca de banana servia como rinque de patinação. Cascas de noz viravam cestos, dedais eram baldes e botões, bandejas. A lavanderia ficava num bule de chá e um só morango dava para fazer muitas tortas, assadas em formas feitas de tampinhas de garrafa. Meu episódio preferido era quando eles entravam numa casa e faziam da pia do banheiro uma piscina.




Dos livros: Os Anõezinhos, A cidade dos Anõezinhos & Os Vizinhos dos Anõezinhos, por William Donahey, Ed Melhoramentos, São Paulo, s/d (c.1950)